sexta-feira, novembro 03, 2006

A tristeza...

A TRISTEZA DURARÁ PARA SEMPRE

Daqui a nada não sou nada. Nem ninguém. Encosto-me ao respaldo. Acho-o desconfortável. É noite. Cerro os olhos. Cansado. Vejo um homem velho. Calvo. Cansado. Senta-se à borda da cama. Poisa a fronte nos dedos. Os dedos estão saturados de nós e unhas negras. Compridas e negras. Terminam em anzol. Calos enormes. As falanges bolbos. As cutículas luas novas. Imerge desesperado. Perscruto-o como se analisasse um quadro. Um quadro quieto. Sem cor. Um quadro sem valor algum. O desespero não alcança valor quando posto em quadro. O homem dá ares de não ser nada. Nem ninguém. Não vale um avo, o homem. Tão-pouco dá ares a alguém. No limite será avô, jamais um avo. Tal qual o desespero, não alcança valor. Mas continua velho. E calvo. E cansado. E com os membros deformados pelo uso e pelo tempo. Perdeu algo que não ousa indagar. Talvez outra pessoa. Uma sachola. Quiçá um corta-unhas. Talvez tenha perdido tempo, deixando-o passar sem fazer caso. O tempo é um caso sério quando se não dá por ele. O mais certo é ter-se perdido a si próprio, o que redunda num profundo desatino. Em desespero de causa, ou por causa desse desespero, estraleja a dentadura antes de submergi-la num copo com água e roçar a gengiva de cima na gengiva de baixo. A noite acentua-se. Cega. Carregada. Cansada. O homem é velho e calvo e cansado e desdentado e aparenta sofrer da coluna. Queixa.se inadvertidamente. Ronda os setenta e picos. Um pouco mais, talvez. Embora não muito. Oitenta, no máximo. Sondo-o daqui, do forro das pálpebras. Baixa os braços e desliza os ombros. Fica com eles caídos. A pele escorrega-lhe na barriga igual a um regato de gelatina. Esqueci-me de mencionar que se encontra seminu. Do umbigo para norte. As calças do pijama cobrem-lhe as partes e os cotos que outrora deram lugar a pernas robustas. Foge ao sono. Pigarreia e aclara a garganta. A maçã-de adão move-se em movimentos extemporâneos. Não logra falar. Não terá nada para dizer. A maior parte do tempo, não temos nada para dizer. E o homem velho e calvo e cansado e desdentado e doente das costas deitou o tempo para trás destas faz muito tempo. Assim de repente, evoca um fresco de um pintor toscano que visitei há anos numa galeria. Não retenho o nome da galeria. Tenho dificuldade com os nomes. Mal me lembro onde se situava. Ficava algures, e basta. O homem velho e calvo e cansado e desdentado que padece da coluna retira uma foto de cima da mesa-de-cabeceira e ergue-a à contraluz, ou fá-lo-ia, acaso achasse luz dentro do quarto. Olvidou-se-me referir que o quarto é escuro e o homem velho e calvo e cansado e desdentado e convalescente do reumático se orienta tão-somente através de sombras. As sombras funcionam, para o homem velho e calvo e cansado e desdentado e raquítico, que nem uma bússula. O umbigo assinala o sul. Designa círculos e rectângulos e losangos e quadrados com os iscos que lhe pendem das manápulas. Não pretende comunicar senão um estado geométrico. Torna a emoldurar o retrato no sítio. Fecho os olhos multiplicando forças e enquadro-o com maior nitidez, Guarda medo a qualquer coisa. Visto de perto, não passa de um homem velho e calvo e cansado e desdentado e marreco e borrado de medo do escuro. Descreve outro simbolo no breu. Não escrutino significado. Descerro os olhos. Mantenho-os abertos. Cansados. Não diviso luz no quarto. A manápula acena-me. O retrato sorri. Pareço eu hoje. Agora.(...)

Miguel Marques, 27 anos, escriturário. Lisboa

Publicado no Diário de Notícias de 03.11.06 no suplemento 6ª no DN JOVEM com o subtítulo « Um texto com sabor a despedida»

Sentado numa esplanada, encostado ao vidro da montra, João revirava a revista vezes sem conta. Quando me aproximei percebí que tinha os olhos inchados de choro. Quando me sentei, deu-me o texto para ler e disse qualquer coisa parecida com:« Eu é que devía ter escrito isto. Mas, como sempre, chego atrazado.»
Li o texto todo sem qualquer comentário e no fim o João pediu-me: « Publica lá isso onde escreves. Assim deve ser lido por mais gente»
«E escrevo mais o quê, João? O teu nome, idade, BI, etc. etc ? como se o texto fosse teu? »
«Não, pá. Põe onde achares melhor e "assinas" : de um homem velho, cansado, quase marreco e borrado de medo do futuro»


E só porque ele me pediu, aqui fica escrito. Sem mais palavras.

4 Comentários:

Às domingo, 05 novembro, 2006 , Blogger Maria disse...

(Já sei que eu não conto ...) mas o texto é lindíssimo. Muitíssimo bem escrito, com uma pormenorização que nos deixa ver claramente o quadro.
Da parte a azul ... já não sei se gosto tanto (vou pensar!)
Um beijo para ti

 
Às domingo, 05 novembro, 2006 , Blogger Leticia Gabian disse...

Lindo, Zé!
Lindo, lindo.

 
Às domingo, 05 novembro, 2006 , Blogger Zé-Viajante disse...

Leticia, atenção. O texto a negro não é meu!

 
Às segunda-feira, 06 novembro, 2006 , Blogger Maria Carvalho disse...

Triste. Muito triste. Beijos.

 

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